Da escola pública à UFC: jovem desafia desigualdades e realiza sonho de ser professora

Com amor pela matemática, jovem da rede pública supera desafios e conquista vaga na UFC
Entre carteiras ocupadas, predominância masculina e um cenário ainda desigual no ensino superior, a estudante Rebeca Freitas de Castro, de 18 anos, dá os primeiros passos rumo ao sonho de se tornar professora de matemática. Moradora do bairro Lagoa Redonda, em Fortaleza, e ex-aluna da rede pública estadual, ela viu sua vida mudar em março de 2025, ao ingressar no curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus do Pici.
Na sala onde cursa disciplinas com turmas de cerca de 50 alunos, apenas 10, em média, são mulheres. Ainda assim, Rebeca ocupa o espaço com confiança. Apaixonada por números desde a infância, ela desafia estigmas que persistem no imaginário social: de que meninas não se destacam nas ciências exatas; de que jovens pobres não ambicionam a universidade; e de que estudantes da rede pública não conseguem acesso ao ensino superior.
Egressa da Escola Profissionalizante Comendador Miguel Gurgel, em Messejana, Rebeca cursou o ensino médio integrado a cursos técnicos, como Contabilidade, Desenvolvimento de Sistemas e Multimídia. Foi nesse ambiente, com ensino em tempo integral, que amadureceu a vontade de seguir na vida acadêmica — apesar das incertezas que surgiam sobre o que fazer após o 3º ano.
“No ensino médio, minhas professoras de matemática foram todas mulheres. Uma delas me marcou muito, me incentivou de verdade. Aquilo me inspirou. Sempre gostei da matéria, e isso só reforçou minha decisão”, conta. Ela lembra, inclusive, de um dia encontrar dentro da Bíblia um papel antigo com contas que fazia quando ainda era criança.
Durante o último ano escolar, em 2024, Rebeca conciliou a maratona de aulas com a preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e vestibulares como o da Uece. Nos intervalos, atuava como "facilitadora", reforçando conteúdos de matemática com colegas, uma amostra da educadora que já habita seus planos.
No Sisu, conquistou vaga em duas universidades públicas: UFC e Uece. Optou pela UFC e hoje cursa as disciplinas de forma integral, em aulas no período da tarde e noite.
Uma conquista familiar
A aprovação foi motivo de comemoração para toda a família, sobretudo para a mãe, Ana Angélica Alves Freitas de Castro, de 53 anos, que trabalha como doméstica e sustenta a casa. “Sempre acreditei que ela conseguiria. Ela é muito dedicada. Quando soubemos, foi uma alegria imensa”, recorda.
O sonho de Rebeca também é, em parte, uma continuidade de um desejo do pai, que não pôde estudar por dificuldades financeiras. Diagnosticado com retinose pigmentar, doença que afeta a visão, ele está afastado do trabalho há alguns anos. “Ele sempre valorizou muito meus estudos. Dizia que queria me ver onde ele não pôde chegar. Ele é minha maior inspiração”, diz Rebeca.
Hoje, a estudante conta com o apoio da bolsa Pé de Meia Licenciatura, iniciativa do Governo Federal para incentivar a formação de futuros professores. O benefício tem ajudado nas despesas da casa e garantido a permanência dela na universidade.
Desigualdades e resistências
O curso, no entanto, traz seus próprios desafios. “O conteúdo é difícil, tem muita coisa que eu nunca vi antes. Mas o que mais me incomoda é que a maioria dos colegas são homens. Muitos professores também. Já percebi que, às vezes, dão mais atenção aos meninos. A gente fala menos, se impõe menos. Mas sigo firme”, afirma.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2023, na UFC, o curso de Licenciatura em Matemática contava com 201 estudantes homens e apenas 69 mulheres. Apesar disso, Rebeca acredita que sua presença ali já é uma forma de enfrentamento.
“Eu vejo pessoas que não acreditam na universidade, que acham que estudar é perda de tempo, que preferem apostar em internet. Eu não quero isso. Quero ser professora, fazer mestrado, doutorado. E ajudar meus alunos como fui ajudada”, afirma com convicção.
Cultura de acesso e permanência
A trajetória de Rebeca é resultado também do esforço coletivo promovido pela escola em que estudou. Na Comendador Miguel Gurgel, o foco é garantir que ao menos 75% dos alunos do 3º ano ingressem no ensino superior. Segundo o diretor Rafael Ferreira, nos últimos dois anos a taxa de entrada de egressos da escola na universidade subiu de 40% para 70%.
A escola aplica avaliações simuladas nos moldes do Enem e da Uece, fornece boletins por área de conhecimento e incentiva os alunos a sonharem alto — e concretizarem esses sonhos. “Nosso lema é aprovar, empregar e preparar para a vida. Entendemos que o trabalho da escola não se encerra no 3º ano”, diz o gestor.
Orgulho e esperança
Hoje, já com um semestre de UFC cursado, Rebeca também se emociona ao reencontrar antigos colegas de escola nos corredores da universidade. “Quase minha turma toda passou. É lindo ver todo mundo onde queria estar. Eu tenho muito orgulho de todos nós.”
Mesmo com obstáculos, ela segue determinada. “Não é fácil, mas é possível. A gente veio da escola pública, sim, mas isso não significa menos capacidade. Eu sou uma das poucas meninas na sala e vou continuar sendo. Porque o meu lugar também é aqui.”
Redação ANH/CE
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